Kumbukumbu é uma palavra da língua africana swahili que resgata uma dimensão do passado que abre caminho para o futuro. Por esse simbolismo, a expressão dava nome à exposição sobre a arte africana do Museu Nacional, uma das que foram completamente destruídas pelo incêndio de domingo (2), no Rio de Janeiro.
Entre as 185 peças expostas e consumidas pelo fogo estava o Trono de Daomé, reino africano que traficou pessoas escravizadas e tinha o Brasil como um de seus principais comparsas.
Resistência das religiões
Uma das partes mais importantes da exposição era a que contava pouco da resistência das religiões de matriz africana no Brasil, com objetos ritualísticos do candomblé, que foram confiscados pela polícia do Rio de Janeiro desde o império, quando a prática da religião era proibida por lei.
Diretor do Museu Nacional durante o Século XIX, Ladislau Netto pediu à Polícia da Corte que encaminhasse os objetos apreendidos para estudo no museu, e assim começou a se formar a coleção que preservava antigas técnicas de metalurgia e da arte em madeira que confeccionaram os materiais usados nas práticas religiosas da última geração de africanos traficados para Brasil e de seus descendentes diretos.
A exposição contava ainda com importantes estatuetas de orixás esculpidos em madeira pelo artista popular Afonso de Santa Isabel e adicionadas ao acervo entre 1940 e 1950.
Os objetos faziam parte da coleção de Heloisa Alberto Torres, ex-diretora do museu que viajou à Bahia no Século XX para reunir objetos das principais casas de candomblé do recôncavo baiano.
A curadora da Kumbukumbu conta que o trabalho feito na montagem da exposição buscou revalorizar a cultura africana e, ao mesmo tempo, discutir as relações raciais no Brasil, país que mais demorou a abolir a escravidão.
“Foi uma oportunidade incrível justamente para a gente recuperar toda uma discussão a respeito das relações raciais no Brasil, da importância do estudo da história da África para se entender o Brasil, de se discutir a questão da escravidão e como ela impacta de forma muito negativa a sociedade brasileira”, lembrou a pesquisadora, enquanto acompanhava o trabalho dos bombeiros nos escombros do Museu Nacional.
Museu suburbano
Apesar de ser famoso por ter abrigado a residência da família imperial, o Museu Nacional é parte do subúrbio carioca, e a Quinta da Boa Vista, onde ele fica, é uma das principais áreas de lazer dessa região da cidade.
Localizado na zona norte do Rio de Janeiro e vizinho de comunidades como a Mangueira e o Tuiuti, o Museu Nacional recebia muitas visitas de escolas públicas e tinha acesso fácil para moradores da periferia, que podiam usar o trem e o metrô para chegar ao local partindo de diversos pontos da zona oeste, zona norte e Baixada Fluminense.
“Buscamos trazer também uma discussão sobre a pobreza no Brasil, onde a população negra é um percentual imenso da população pobre, da população carcerária e da população assassinada”, disse a curadora, que lamentou a destruição de um acervo que tinha características únicas, mesmo se comparado a grandes museus do mundo.
“A nossa coleção tinha uma parte que chegou como um presente para Dom João, então era uma coleção muito antiga e muito valiosa. A gente pode recuperar um inventário do que existiu, mas o que existiu está perdido. Agora e para todas as gerações que virão”.
Professor da etnologia, departamento que abrigava a exposição, Antônio Carlos de Souza Lima acrescenta que também foram perdidas peças indígenas de tribos que não existem mais, artefatos maoris, jades indianas e até uma armadura samurai.
“A perda da etnologia é irreparável. Isso é resultado de décadas de descaso das elites políticas. É um retrato do que a elite financeira e política pensa do que é o Brasil”, finalizou.