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Crítica | Vice: “A mordaça aumenta a mordacidade”




É estranho pensar um filme de Adam McKay por vieses estritamente cinematográficos. Desde a sua estreia, com a eficiente comédia O Âncora: A Lenda de Ron Burgundy (2004), ele vem se provando um diretor de farsas. Mas não a farsa pejorativa, que tem o sentido de embuste e, talvez, de falsidade ideológica. Trata-se de uma farsa teatral, uma peça cômica, acessível ao público; uma história onde predominam as ações banais, as situações ridículas e que, não raramente, provocam o riso.

Três anos após de ter finalizado O Auto da Compadecida, Ariano Suassuna – um mestre da farsa – escreveu uma peça chamada A Farsa da Boa Preguiça, por meio da qual aprofundava sua proposta de buscar na cultura popular a fonte para um teatro erudito brasileiro. E sempre sem deixar de lado as questões sociais, com suas críticas escancaradas vestidas justamente pelo gênero da farsa. Em resumo, o imortal Ariano colocava em prática as palavras de Florbela Espanca: “A ironia é a expressão mais perfeita do pensamento.”

Um leque de gêneros

Vice, esse trabalho de McKay após o badalado A Grande Aposta, põe em xeque a realidade através de um espetáculo grotesco – e por isso risível –, mas sem jamais chegar ao xeque-mate até realmente sua última cena (em meio aos créditos finais). Essa quase morte dos fatos constrói um paralelo entre a política e a verdade, um paralelo que não permite que ambas caminhem de mãos dadas. Desde o início, o filme traz explicações sarcásticas sobre a maneira de se abordar seu protagonista, como que salientando ser humanamente impossível tratar um sujeito como Dick Cheney (Christian Bale) com seriedade.

“É pela ironia que começa a liberdade.”
– Victor Hugo

Para McKay, é essencial traçar um retrato distorcido de situações que poderiam perder toda a credibilidade se fossem tratadas de uma maneira realista. Por mais que isso pareça controverso, trata-se de uma técnica de roteiro utilizada especialmente para desenhar situações predominantemente inacreditáveis. Nesse caso, a ironia é utilizada para ridicularizar os acontecimentos e, especialmente, os sujeitos retratados: suas decisões, sua moral, sua ética e seu compromisso exatamente com a realidade.

(Imagem: Imagem Filmes)

Além de tanto, a direção de McKay é de uma segurança quase que incontestável. Sua linguagem cinematográfica – ao mesmo tempo comercial e autoral – é contornada por um leque de gêneros que se metamorfoseiam com uma organicidade enorme. Desse modo, é possível perceber tons de documentário político (à la Michael Moore), uma pegada de agilidade quase que aventuresca – que, com suas músicas, podem remeter a filmes como Em Ritmo de Fuga (de Edgar Wright, 2017) – e uma utilização de histórias paralelas que fazem jus à contribuição de D.W. Griffith para o cinema, lá na segunda década do século XX.

A escada suja de uma alma corrompida

Melhor: Vice não traça necessariamente histórias paralelas. Muitas cenas, se assistidas com menos atenção, podem causar um desconforto por aparentarem algum despropósito e, talvez, uma ligação falha com o restante do filme. É aí que reside a competência do editor Hank Corwin: as ligações entre tais cenas não possuem fluidez estética e a dinâmica de uma continuidade simples porque o que está em jogo é o tema. Corwin, que montou o contemplativo A Árvore da Vida (de Terrence Malick, 2011) e já trabalhou com McKay no citado A Grande Aposta, não constrói com o seu trabalho um filme biográfico. Ele utiliza o personagem para falar de política. Sua montagem não é a organização factual, histórica, dos acontecimentos, é um julgamento dos processos internos de uma instituição fadada a jogos sujos e à glorificação da mediocridade.

Com o roteiro do próprio McKay procurando deixar claro que Cheney, apesar de ter uma índole ruim, sabia dançar conforme a música como poucos (sendo isso um atestado precisamente de crueldade) – e a cena em que o diretor e o editor constroem sua chegada à vice-presidência como se pescasse o instintivo George W. Bush (Sam Rockwell) beira a genialidade –, Vice leva o seu conteúdo a uma dimensão que o afasta substancialmente de outras obras com o mesmo tema. Se, por exemplo, a série House of Cards traz à tona os excessos particulares dos seus personagens – especialmente dos seus protagonistas –, a vida pessoal de Cheney, aqui, é somente artifício para a construção de sua complexidade enquanto humano. E o mais interessante nessa percepção é que, por mais que exista alguma espécie de bondade corrompida na alma daquele homem – como quando aceita sua filha mais nova, Mary (Alison Pill), como lésbica para, mais à frente, sugerir que a mais velha, Liz (Lily Rabe), posicione-se contra o casamento homossexual –, ele sempre pode sacar uma carta na manga que desfaz qualquer bondade.

(Imagem: Imagem Filmes)

Tais cenas são tratadas com uma seriedade que destoa do sarcasmo com o qual é tratado Cheney. Volta-se à razão da existência do filme: Ele (Cheney), apesar de ser o personagem principal, é nada mais do que uma escada – suja – para uma história que escancara os malefícios políticos da incapacidade de muitos que estão no poder de pensar no próximo.

O esfacelamento da caricatura

O humor que é depositado nos ombros de Cheney desde o início parte da sua juventude pouco sóbria e segue até os seus ataques cardíacos com mais idade, sendo utilizado essencialmente para a sátira. É, portanto, fundamental a atuação de Bale, que encarna o vice-presidente nada decorativo com um poder interpretativo que transcende a sua personagem. A caricatura proposta por McKay começa a se esfacelar, como se estivesse sendo lapidada durante todo o filme até o gesto mais desumano: a instituição de uma guerra sem propósito, desmedida e puramente viril. Ali, Cheney, sem sua pele farsesca, encontra em Bale um ator capaz de não somente imitar gestos, sotaque e expressões, mas alguém capaz de ir às profundezas para trazer à tona o que há de pior no ser humano.

Despido de ironias, o monólogo final – que quebra a quarta-parede – é um concerto de uma só voz para que o público assista paralisado. Quando um monstro, após uma vida pública atestada por votos, ainda acredita em tudo o que fez como aquilo que tinha que ser feito, sem demonstrar remorso, arrependimento ou um mínimo de tristeza, ele deixa igualmente de ser uma pessoa e veste de volta a caricatura. O pior é que, dessa vez, ela (a caricatura) é a realidade exposta sem firulas. Sua atitude hipnótica é um modo de dizer que, no final das contas, a culpa não é dele… é de quem o colocou ali mesmo com tantos sinais indicando o quão próxima do inferno estava a sua alma.

(Imagem: Imagem Filmes)

O rei está morto

Vice é uma farsa sobre algo que é complexo em sua essência velada, mas que precisa ser acessível por ser, afinal e por necessidade, de interesse público. É uma história predominantemente de ações banais, de situações ridículas e que, não raramente, provocam o riso. Três anos após de ter finalizado A Grande Aposta, McKay – um mestre do cinema farsesco – faz do filme em questão um instrumento através do qual aprofunda sua proposta de buscar no cinema comercial a fonte para um cinema autoral. Sempre sem deixar de lado as questões sociais, com suas críticas escancaradas vestidas justamente pelo gênero da farsa, o diretor coloca em prática as palavras de Millôr Fernandes: “O último refúgio do oprimido é a ironia. E nenhum tirano, por mais violento que seja, escapa a ela. O tirano pode evitar uma fotografia, mas não pode impedir uma caricatura. A mordaça aumenta a mordacidade.”

E, em meio aos créditos finais, o xeque-mate enfim.

Fonte: Canaltech

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