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Duas Rainhas presas a escolhas




Ao contrário do que expõe o título brasileiro, não há sentido de igualdade no roteiro de Beau Willimon. Ele (Willimon), responsável por diversos episódios da série House of Cards e pelo ótimo filme Tudo pelo Poder (de George Clooney, 2011), concentrou seu texto exatamente como sugere o livro que o gerou e, claro, o título original: Queen of Scots: The True Life of Mary Stuart e Mary Queen of Scots (respectivamente).

Indo por esse caminho, não há sentido de igualdade, também, entre o texto de Willimon e a direção de Josie Rourke. Por parte da diretora, há uma luta constante para tornar mais forte e mais necessária a presença da particularmente vulnerável Rainha Elizabeth I (Margot Robbie); já pelas mãos do roteirista, Mary Stuart (Saoirse Ronan) é o foco, a soberana.

(Imagem: Universal Pictures)


Cuidado! Daqui em diante esta crítica pode conter spoilers!

Beleza estética como cosmético

O duelo de percurso acaba se refletindo no ritmo problemático do filme. Quando alguma situação passada por Mary consegue engrenar de alguma forma, a necessidade de contornar a vida da Rainha Elizabeth I desconstrói com seu paralelismo claramente desnecessário. Isso fica ainda mais evidente por meio da condução de Rourke, que parece não saber exatamente o que fazer com os planos escolhidos. Há cortes, por exemplo, que mostram, sem qualquer organicidade, outro ângulo do ambiente sem que essa nova perspectiva modifique qualquer olhar do público.

Isso, em se tratando de outros filmes com temática ao menos um pouco semelhante, faz com que Duas Rainhas se coloque muito abaixo em relação à linguagem própria do cinema. Enquanto, entre outros, Elizabeth (de Shekhar Kapu, 1998) e, especialmente, o recente A Favorita (de Yorgos Lanthimos, 2018) são obras por meio das quais a forma fala tanto ou mais do que o conteúdo, no filme em questão a forma acaba enterrando o conteúdo. O que se vê são alguns planos muito bonitos e algumas tomadas aéreas que surgem como cosmético, mas quase nada que conduza o filme convincentemente à frente.

Os maiores acertos e o hino da Champions League

Há, mesmo assim, momentos de muita coragem e outros de pura inspiração: como a abertura, que antecipa o fim de Mary, mostrando-se consciente de que a história em si importa mais do que o desfecho; ou o desejo impossível de engravidar de Elizabeth I, revelado em alguns detalhes de grande beleza narrativa e estética – tendo como pontos altos a sua admiração por um potro recém-nascido e a sua imitação de grávida traduzida em sombra.

Citando a utilização da luz, fica claro o rigor da direção de fotografia de John Mathieson (de Logan, 2017). Não há um espaço sequer iluminado ou sombreado por Mathieson que seja desprovido de função. Assim, há personagens que entram e saem da luz como se revelassem quem são por um instante e voltassem a se esconder e outros, como o pastor John Knox (David Tennant), que dificilmente deixam a luz (especialmente a do sol) tocar a sua pele. Há, nesse sentido, uma alfinetada religiosa a qualquer grau de vampirismo exercido por líderes que mais se importam com verdades particulares do que com o bem-estar alheio. Ainda, a inteligência de Mathieson talvez beba até da Bíblia, visto que as sombras são símbolos da morte, do perigo e da ignorância espiritual nos livros bíblicos.

(Imagem: Universal Pictures)

Junto à citada competência da fotografia, o figurino desfila com muita naturalidade. É tudo de muito bom gosto e sobretudo representativo, como o vestido inteiramente vermelho-sangue de Mary no dia de sua morte – especialmente para quem ficou conhecida como La Reine Blanche (A Rainha Branca) –, e a roupa que cobre apenas superficialmente a sua nudez em uma banheira. Esse trabalho de Alexandra Byrne (vencedora de um Oscar justamente pela continuação de Elizabeth, Elizabeth: A Era de Ouro) é tão efetivo quanto pode em meio à bagunça promovida pela direção de Rourke e pela montagem pouco inspirada de Chris Dickens (vencedor do Oscar em 2009, por Quem Quer Ser um Milionário?).

(Imagem: Universal Pictures)

Incompatível tecnicamente está a música de Max Richter (do excelente Nunca Deixe de Lembrar, 2018). O tema composto pelo alemão para a trilha sonora é uma colcha de retalhos que, inicialmente, muito lembra o hino da Liga dos Campeões da UEFA. Por sua vez, a música da Champions League já é uma adaptação da obra Zadok the Priest, do também alemão Georg Friedrich Händel. Se a intenção de Richter era localizar temporalmente o filme, ainda assim seu trabalho soa deslocado, visto que Händel viveu entre o último quarto do século XVII e pouco mais da metade do XVIII e Duas Rainhas se passa mais de cem anos antes (a morte de Mary se deu em 1587).

É hora de virar a chave

No meio das escolhas que estragam a narrativa, muito se perde em Duas Rainhas: suas tentativas de incursões feministas, que parecem inseridas de forma solta; suas críticas sobre guerras religiosas e, consequentemente, sobre o poder das religiões; as atuações excepcionais de Ronan e Robbie; e o desenho de produção de James Merifield (do mais que interessante – inclusive pelo título – A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata).

Merifield, inclusive, passa as pouco mais de duas horas de duração com seu trabalho aterrado nas cenas de uma diretora que tem muito talento, mas que já precisa repensar sobre sua carreira. Como ela vem do teatro e, de fato, tem merecido reconhecimento na Inglaterra – sendo diretora artística do teatro Donmar Warehouse, em Londres, desde 2012 –, só precisa virar a chave e assumir o modo cinema.

As artes são diferentes, consequentemente, a forma de passar para o público exige habilidades específicas. E está tudo ali, embutido na mente de uma profissional incrível que só precisa se soltar.

Fonte: Canaltech

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