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Crítica | O Irlandês é uma obra-prima sobre a vitória do fim




Crítica | O Irlandês é uma obra-prima sobre a vitória do fim - 1

Em 1972, quando Francis Ford Coppola lançou O Poderoso Chefão, o público foi convidado a sentar à mesa de Don Vito Corleone (Marlon Brando), um dos chefes da máfia mais respeitados criados pela literatura de Mario Puzo. Ao mesmo tempo em que aquele filme retrata um personagem tão ameaçador, faz também de suas ameaças algo emocionalmente convincente, admirável. A introdução, que contrasta Don Corleone em seu escritório discutindo os interesses de Bonasera (Salvatore Corsitto) com o casamento de sua filha, revela o equilíbrio do poder e do afeto, da importância da família, e como não é difícil cultuar um criminoso quando passa a se considerar tudo dentro dos seus termos.

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

Na calada da noite

O Irlandês (disponível na Netflix), por sua vez, não está interessado na pompa do crime nem muito menos em provocar alguma espécie de reverência do público para com seus personagens – especialmente por Frank Sheeran (Robert De Niro). A direção de Martin Scorsese (de O Lobo de Wall Street, 2013), junto ao roteiro adaptado de Steven Zaillian (de A Lista de Schindler), prefere o lado mórbido de tudo, a parcela mais humana e menos permissiva dos atos. Nesse sentido, o plano-sequência inicial, que pacientemente sinaliza onde Sheeran está – em um abrigo para idosos –, não é somente eficiente para demonstrar a localização daquele homem, mas para contrastar o envolvimento nada solitário de cada hóspede de tal asilo com a solidão do protagonista. Esse contraste é reforçado pelo resgate da canção In the Still of the Night (I’ll Remember) – em tradução livre: Na Calada da Noite (Eu Me Lembrarei) –, de Fred Parris, que, na voz dos Five Santins, canta:


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“Na calada da noite,
eu te segurei,
segurei apertado
porque eu te amo
Amo-te tanto…
Prometo que eu nunca
vou deixar você ir
na calada da noite.”

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A solidão de Frank Sheeran (Robert De Niro). (Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)

Ao passo que uma música que fala de amor de maneira inocente (infelizmente não traduzida pela legendagem) aqui é dura o suficiente para já ceder algumas camadas à personalidade de Sheeran, essa mesma letra provoca uma rima que pode ser de uma eficiência dolorida quando, mais à frente, a personagem de De Niro começa a sair na tal calada da noite e Peggy (sua filha – Lucy Gallina e Anna Paquin) apenas pergunta sobre o seu destino (“Ao trabalho.”, diz ele), sem forças para impedi-lo de sair e muito menos para dizer que o ama.

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Os deuses de Scorsese

Scorsese, por sinal, está muito mais interessado em tornar seus criminosos interessantes sem que, para isso, seja necessário fomentar uma aura de deslumbramento. Isso faz com que O Irlandês não seja um filme que evoca o poder e as consequências diretas dele, mas uma ode ao tempo e, sobretudo, um tratado sobre lealdade, amizade e escolhas.

Não que tudo isso seja contornado por linhas retas, afinal há quem diga que a vida é escrita certa em linhas tortas mesmo. Por esse lado, relembrar dos trabalhos cineteológicos de Scorsese é quase como acrescentar interpretações aqui: se A Última Tentação de Cristo (1988) expõe um Jesus frágil e perturbado que reflete como seria sua vida se tivesse a levado de forma comum e Silêncio (2016) expõe a intolerância humana e justamente o silêncio de Deus – que talvez doa no filho (e nos filhos) muito mais do que pregos fincados no corpo e uma coroa de espinhos – O Irlandês pode ser visto como a comunhão dessas experiências.

Isso porque Sheeran – frágil e perturbado – acaba por se perceber sozinho, abandonado, sem a única voz que gostaria de ouvir (a de Peggy), até mesmo quando vai até ela. A resposta dela, de certo ponto ao final da vida é, então, o silêncio. Ainda assim, talvez fique claro que não é o silêncio do desprezo, mas é o de distanciamento por discordar inteiramente dos métodos do seu criador, como alguém que percebe o próprio pai como um deus, mas aquele do Velho Testamento, que prova o amor através da morte e que precisaria ceder seu filho ao mundo para aprender a dar a outra face.

Peggy é esse filho. A cena em que ela pergunta ao pai “Por quê?” (em uma das poucas falas da personagem) é, inclusive, das mais intensas de todo o filme. Paquin dá à pergunta de sua personagem uma força tão destruidora que, naquele momento, Sheeran vai para o inferno. Ele, que não consegue olhar para a filha, fomenta a fragilidade do seu poder. Ela, que não desvia os olhos dele, atesta o poder da dúvida e a força de não concordar com as atitudes do próprio pai, por mais que estas tenham sido a forma que ele, embrutecido, encontrou para dar proteção e demonstrar amor.

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“Por quê?” (Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)

Scorsese, obviamente, tem papel fundamental nessas questões: enquanto trata Sheeran e Russell Bufalino (Joe Pesci) com planos e contraplanos comuns e, muitas vezes, encaixando-os nos mesmos frames – algo que também faz com Sheeran e Jimmy Hoffa (Al Pacino) –, o tratamento que dá às cenas do protagonista com sua filha separa-os esteticamente de um jeito quase violento. Pela direção de fotografia de Rodrigo Prieto (do citado Silêncio), ora ele à sombra e ela à luz; ora ele de perfil e ela de frontal; ora ele em grande plongée e ela em close… a questão é que o diretor jamais idealiza pessoas tão próximas, mas com tanto entre elas, em união visual. Existe muito mais do que alguns centímetros ou poucos metros entre elas e a escolhas de Scorsese junto à luz de Prieto atestam esse distanciamento.

O fim sempre vence

A visão de Scorsese, por sinal, faz de O Irlandês um contraponto exatamente para O Poderoso Chefão (com a música de Robbie Robertson – de Jimmy Hollywood – evocando a de Nino Rota de vez em quando). Em oposição ao filme de Coppola, o que se vê aqui não é a máfia como algo a ser temido-porém-respeitado, a prosperidade da família (Vito – De Niro no segundo filme) e a decadência da moral (Michael – Al Pacino) exercidas por homens; o que se apresenta é a máfia pela máfia aos olhos do público. No final das contas, Scorsese tem controle total do seu trabalho a ponto de se permitir deixá-lo inteiramente para as interpretações e para o ajuizamento de cada espectador.

Essa sensibilidade fica clara na última cena: construindo imageticamente algo semelhante ao final do filme de 1972 – quando Michael, enfim, assume a função de chefe de família e Coppola exclui Kay (Diane Keaton) ao fechar a porta entreaberta que a permitia ver os homens beijando a mão do então esposo –, Scorsese deixa a sua porta entreaberta a pedido do seu personagem: “Padre? Pode me fazer um favor? Não feche a porta completamente. Não gosto disso. Deixe-a entreaberta.”

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Final de O Poderoso Chefão. (Imagem: Paramount Pictures)
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Final de O Irlandês. (Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)

A partir daí, as diferenças ficam claras: a visão de Scorsese é muito mais um julgo, é mais dura (sem de modo algum invalidar o trabalho de Coppola). Sheeran, com o natal se aproximando, sozinho e sem ter para onde ir e muito menos com quem ficar – é entregue ao espectador, que o vê por alguns segundos pelo vão da porta entreaberta até que o corte seco para a tela escura traz de volta a mesma música do início.

“Então, antes da luz,
segure-me novamente,
com toda a sua força,
na calada da noite.”

Mas não tem ninguém para segurá-lo.

Resta imaginar se aquele homem se sente culpado pelas suas escolhas ou apenas quer conversar conosco sobre a lealdade que decidiu levar para o túmulo. Ou sobre o quanto o tempo é implacável… o fim, que sempre vence.

O Irlandês é uma obra-prima.

*Crítica dedicada à minha mãe

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Fonte: Canaltech

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