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Crítica | The Witcher é uma obra incrível, mas problemática para não-iniciados




Crítica | The Witcher é uma obra incrível, mas problemática para não-iniciados - 1

Quando a Netflix anunciou em maio de 2017 que iria produzir uma série baseada na saga de livros conhecidos aqui no ocidente como The Witcher (ou A Saga do Bruxo em português), houve muita comemoração do público, principalmente daquele nicho que é fã de histórias de fantasia. Na época, The Witcher 3 já havia sido considerado como o Melhor Jogo do Ano em 2015 e hoje, segundo dados da CD Projekt RED, produtora do game, ele possui cerca de 20 milhões de unidades vendidas em todo o mundo, equiparando-se, em vendas, a Super Mario World, um dos maiores clássicos da história dos videogames.

Mas, como a imprensa de cinema/TV ainda está muito separada da imprensa de videogames e de os livros da saga não serem tão famosos, desde o anúncio a série foi recusada de ter “vida própria” e vem sendo chamada por muitos como “o Game of Thrones da Netflix”. E é fácil entender o porquê dessa comparação: Game of Thrones foi o maior fenômeno cultural da TV da última década e conseguiu aquele tipo de status reservado a marcas lendárias como Star Wars (no cinema), Homem-Aranha e X-Men (nos quadrinhos) e Super Mario Bros (nos videogames). Todas elas possuem um reconhecimento tão grande que mesmo quem nunca consumiu nenhuma dessas obras sabe do que você está falando quando elas são citadas em uma conversa. Assim, qualquer nova série de fantasia será, corretamente ou não, comparada à Game of Thrones, pois é a maneira mais simples de explicar para audiência que nunca ouviu falar sobre aquilo que ela pode esperar um mundo medieval com cavaleiros de armadura e espada, magia e talvez um ou dois dragões.

Ainda que você verá essa comparação a todo momento, uma dica para você assistir a série é: esqueça Game of Thrones. Ainda que The Witcher seja uma história de fantasia complexa, com diversos temas políticos e com uma ameaça apocalíptica futura que pode dizimar todo o mundo, a série da Netflix e da HBO possuem pouca coisa em comum. Por isso, querer enxergar The Witcher como uma sucessora de GoT é um caminho certo para a decepção.


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Da Polônia para o mundo

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Imagem: divulgação/Netflix

Como já explicamos em nosso guia para quem não sabe nada sobre The Witcher, a série da Netflix é inspirada nos livros escritos pelo polonês Andrzej Sapkowski. Porém, a história só ficou conhecida mundialmente com os jogos desenvolvidos pela CD Projekt RED — principalmente The Witcher 3: Wild Hunt.

Assim, a série da Netflix já é, em sua concepção, um paradoxo: foi o sucesso dos jogos que fez com que o serviço de streaming tivesse interesse em bancar uma adaptação das aventuras do bruxo Geralt para a TV, mas essa adaptação para TV ignora os jogos e se baseia unicamente nos livros, que nem de longe fizeram o mesmo sucesso e são desconhecidos até mesmo pelos fãs dos personagens e do mundo da série.

Ao fazer essa escolha, a série já se dá um desafio tremendo: ela precisa ser fiel aos livros, mas sem alienar o público que conhece os personagens apenas por causa dos videogames, e introduzir o universo àqueles que nunca ouviram falar sobre The Witcher e estão ali apenas por que é uma série de fantasia com guerreiros e monstros “igual” a Game of Thrones ou Senhor dos Anéis. E, infelizmente, esse é um dos pontos em que a obra acaba falhando.

Um mundo fantástico (para alguns)

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Captura: Rafael Rodrigues/Canaltech

Para aqueles que já conhecem o mundo e os personagens por causa dos jogos ou dos livros, The Witcher é uma das mais fiéis adaptações de uma obra feita para a TV. Henry Cavill consegue se vender muito bem no papel do bruxo Geralt de Rivia e, por causa do próprio ator ser um fã dos jogos, todos os maneirismos de movimentos e do modo de falar serão facilmente reconhecidos por quem já jogou o videogame. Cavill não é uma versão de Geralt desenvolvida para a série de TV (como normalmente acontece nesses casos), mas o próprio personagem dos videogames que tomou vida. Então, se você é tão fã dos jogos como eu, mesmo que a série não apresentasse mais nada de decente ela já seria muito divertida apenas por isso.

Mas, além de Geralt, as outras duas protagonistas da série também merecem destaque: Anya Chalotra consegue convencer muito bem como a feiticeira Yennefer, e a novata Freya Allan, em seu primeiro papel na TV, também está ótima como a princesa Cirilla de Cintra. Ambas conseguem passar de forma excelente para a tela as complexidades de ambas as personagens, exatamente a imagem que tanto os fãs dos livros quanto dos jogos possuem delas.

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A feiticeira Yennefer de Vengerberg (Imagem: Divulgação/Netflix)

Yennefer é talvez uma das personagens femininas mais complexas já criadas em uma história de fantasia e um dos melhores paralelos das lutas de emancipação das mulheres em todo o mundo. Nascida corcunda e com diversos problemas físicos que a atrapalhavam até mesmo para falar, ela viveu as primeiras décadas de sua vida escutando que era apenas uma inútil e que não servia para nada porque era feia e ninguém iria querer se casar com ela. Tudo isso muda quando ela descobre que possui poderes mágicos e é levada para Aretusa, uma escola de magia cujo objetivo é não apenas ensinar jovens a controlarem a magia, mas também versá-las em etiqueta e política para que possam exercer papéis de conselheiras na corte dos diversos reis do continente.

Assim, quando essas feiticeiras completam seu treinamento, elas passam por uma espécie de “cirurgia plástica mágica”, que corrige qualquer tipo de imperfeição que enxerguem em seus corpos, permitindo-as se tornarem as versões mais belas de si mesmas e garantindo que essa beleza se mantenha impassível durante décadas, séculos e milênios, sem que elas envelheçam. Mas há um preço a se pagar por isso: elas devem sacrificar seus ovários para que a operação dê certo, tornando-se estéreis — um paralelo com uma ideia mais recente que se tem da figura da mulher, de que para ela ser feliz deve se dedicar à carreira profissional e se reconhecer pela figura de mulher poderosa que ela é, e não pelo papel de mãe que ela possa desempenhar.

Porém, desde antes de entrar para a escola de feiticeiras de Aretusa, Yennefer sempre teve um temperamento rebelde, não aceitando que qualquer pessoa defina o que deve fazer com a própria vida. Assim, apesar de ter passado por todo o processo para se tornar uma poderosa e bela feiticeira no auge de sua forma, Yennefer é a única de todas as feiticeiras formadas que não aceita o fato de ser estéril — e não necessariamente porque ela quer muito ter um filho e ser mãe, mas porque ela não consegue viver com a ideia de que essa possibilidade lhe foi tirada. Assim como a mulher contemporânea, Yennefer não quer sair de um mundo que ditava as regras de como ela deveria viver sua vida para entrar em um novo mundo com novas regras de como ele tem que viver a vida, mas apenas ter a liberdade para escolher por si mesma os rumos que sua vida deverá tomar.

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A princesa Cirilla de Cintra (Imagem: Divulgação/Netflix)

Enquanto o arco de Yennefer é levado pelo tema da emancipação, o de Cirilla (ou Ciri) é trilhado pelo caminho da identidade. Depois de perder toda a sua família para a guerra, ela é obrigada a vagar pelas cidades atrás de uma pessoa que nunca viu na vida, mas que todos dizem (e, no fundo, ela mesmo sabe) que está diretamente ligada ao destino dela. Nesse processo, Ciri acaba descobrindo que é muito mais do que uma princesa e que faz parte de uma linhagem que domina um poder ancestral ligado a uma antiga profecia.

A trajetória de Ciri segue a clássica “trajetória do herói”, que foi identificada pelo autor Joseph Campbell no livro O Herói de Mil Faces. Durante a primeira temporada da série, vemos Ciri passando pelos primeiros passos dessa jornada.

Vemos o “Mundo Comum”, que é a vida de Cirilla como uma princesa na corte de Cintra, e logo já encontramos o “Chamado para Aventura”, que é quando, no leito de morte, a avó da garota pede para ela procurar por Geralt de Rivia; há um pequeno período de “Recusa do Chamado”, quando a garota tenta viver uma vida comum de refugiada, mas ela logo percebe que isso será impossível ao entrar em contato com a “Ajuda Sobrenatural”, no caso, quando ela acaba descobrindo alguns poderes ocultos que a salvam de um grupo de rapazes que iriam tentar estuprá-la.

A jornada dela na primeira temporada chega até o ponto que Campbell chama de “Cruzamento do Primeiro Portal”, que é quando o personagem finalmente abandona o mundo comum em que vivia e entra de cabeça em um novo mundo mágico — no caso, simbolizado pelo encontro com Geralt, que irá inseri-la em um mundo de monstros, bruxos, feiticeiras e magos do qual ela pouca sabia sobre. É a partir daí que, provavelmente nas próximas temporadas, Ciri começará a descobrir mais sobre quem ela realmente é, sobre o poder que possui e sua importância na profecia élfica que pode significar tanto o fim quanto a salvação do mundo.

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O bruxo Geralt de Rivia (Captura: Rafael Rodrigues/Canaltech)

E uma das belezas da narrativa de The Witcher, tanto nos livros quanto nos jogos, é que Geralt não é, na verdade, o herói de nada, sendo apenas o melhor ajudante já criado em uma história de fantasia. Ao contrário de Ciri e Yennefer, que têm suas trajetórias e objetivos narrativos bem definidos, Geralt não possui nada disso. O bruxo existe apenas para caçar monstros, proteger Ciri dos inimigos dela, e só. Tudo o que Geralt faz na série, nos livros e nos jogos orbita essas ideias — e, quando a existência de um personagem está intrinsecamente ligada a ajudar um outro personagem a completar seus objetivos, e não a satisfazer seus próprios desejos, esse personagem é um ajudante, em qualquer mídia narrativa. Apesar de se portar — e até mesmo ser vendido pelo marketing — como o “Batman” da série, Geralt nada mais é do que um “Robin” que ganhou mais tempo de tela, e talvez seja isso a coisa mais confusa em toda a história de The Witcher: ele é o protagonista no sentido de que tudo é mostrado através de seus olhos, mas, ao mesmo tempo, ele não é o herói da história.

Os efeitos especiais também estão muito melhores do que normalmente se costuma esperar deste tipo de série, e os monstros são bem parecidos com as descrições que vemos nos livros. Também há uma boa caracterização dos cenários, e é possível distinguir claramente quem é um nobre e quem é um soldado plebeu, mesmo que ambos utilizem basicamente o mesmo tipo de armadura. Todavia isso não quer dizer que a série é uma fada sem falhas. Apesar de ser uma adaptação muito fiel e extremamente bem feita dos livros, a série da Netflix falha em mostrar o mesmo respeito pelas pessoas que não conhecem nada sobre esse universo e os personagens que o habitam. E, nesse caso, a comparação com Game of Thrones é um bom paralelo — não na questão temática, mas em como ambos desenvolvem a narrativa.

Ao ver os dois primeiros episódios da série da HBO, o espectador já está totalmente apresentado àquele mundo: ele sabe o que é o continente de Westeros, quem são as principais famílias dali, qual a importância de cada uma delas, porque aquele mundo está passando por uma crise política e qual é a ameaça sobrenatural que espreita de longe e pode transformar todas as disputas pelo trono em algo sem importância.

Já em The Witcher, mesmo após todos os oito episódios da primeira temporada ainda há muitas perguntas, como, por exemplo, qual é o processo mágico usado para transformar alguém em bruxo ou porque Geralt parece ser o único bruxo que todo mundo conhece? Ou, ainda, porque todo mundo odeia os bruxos, apesar de a profissão ser bastante valorizada por ser a única capaz de matar monstros. Todas essas perguntas, básicas para o entendimento do que está acontecendo, se tornam um verdadeiro mistério caso a pessoa comece a assistir à série sem qualquer conhecimento prévio e deixa claro que não houve a mesma preocupação dos produtores na construção do mundo quanto na hora de garantir que tudo o que é mostrado ali esteja fiel ao material base.

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Ainda que a obra seja extremamente fiel, o fato do orçamento dela ter sido bem menor do que em Game of Thrones faz com que muitas vezes se pareça estar assistindo uma versão remasterizada de Xena: A Princesa Guerreira (Captura: Rafael Rodrigues/Canaltech)

Parte dessa culpa também pode ser atribuída aos livros: por exemplo, é difícil ter uma noção de qual é o espaço geográfico entre cada um dos reinos citados em The Witcher porque o autor da história nunca criou um mapa oficial na obra original. Novamente na comparação com Game of Thrones, uma das melhores ideias da série da HBO foi transformar o mapa do continente da sequência de abertura: assim, antes mesmo de começar a assistir, você já tinha uma ideia dos locais que cada cena iria passar e qual a relação geográfica deles com o resto do mundo. Já em The Witcher, cada novo reino citado é uma nova interrogação na cabeça de quem assiste: Cintra? Nilfgaard? Skellige? Zerrikânia? Onde fica cada um desses lugares? Infelizmente não sabemos e não há o menor interesse em revelar, já que na série da Netflix os reinos são quase como gangues, servindo mais para indicar as diferenças no estilo das roupas do que propriamente para nos situar fisicamente dentro do mundo.

Outro problema tem raiz na própria escolha do material base para a primeira temporada, que adapta histórias presentes nos dois primeiros livros da “Saga do Bruxo”: A Espada do Destino e O Último Desejo. O caso é que ambos os livros são coletâneas de contos, e há um problema bem grande quando você baseia toda uma adaptação em contos: esse tipo de história não tem interesse em situar o leitor no cenário ou dar explicações completas sobre o passado dos personagens. Como esse é um estilo de narrativa mais curta e autossuficiente, contos normalmente se interessam mais em apresentar uma moral e trabalhar com os sentimentos do leitor — em matéria de série, pense em algo mais no estilo de Black Mirror, onde as histórias precisam ser poderosas dentro de si mesmas e não depender do que acontece nos outros episódios ou temporadas.

O problema é que os produtores precisavam usar esses contos como base para apresentar os personagens e o cenário onde toda a história do seriado acontece — e, como já explicamos, este não é o objetivo de um conto. Como houve uma preocupação enorme de não sair muito do material original, a série acaba criando alguns momentos bem estranhos e que não são esperados em uma produção deste porte, como o fato de sabermos que Geralt é um bruxo com princípios e que não mata qualquer tipo de monstro apenas porque está sendo pago, mas não sabemos porque um personagem que nos é apresentado com uma profissão tão valorosa — “caçador de monstros” — é tão rejeitado pelo cidadão comum.

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A abertura minimalista com símbolos que representam os três protagonistas é de uma beleza e simplicidade impressionantes (Captura: Rafael Rodrigues/Canaltech)

E é exatamente pelo fato de ter sido inspirado em contos que não possuem necessariamente uma ordem cronológica que temos uma das ideias mais legais de The Witcher: as diferentes linhas do tempo da narrativa. Todos os episódios são divididos entre os três personagens principais — Geralt, Yennefer e Ciri —, mas cada uma dessas histórias acontece em um tempo distinto. O mais interessante é que os produtores da série escolheram não utilizar aquele manjado recurso de colocar a legenda “X anos antes” ou “Y anos depois” em cada transição, optando por usar personagens secundários como indicadores dessa diferença de tempos. Enquanto vemos Geralt conversar com um Rei, o mesmo aparece no fundo da história de Yennefer com apenas cinco anos de idade sendo repreendido pela mãe.

Esse uso dos personagens para indicar a diferença do tempo é muito interessante e faz com que The Witcher não cometa um pecado comum a muitas séries da própria Netflix: duvidar da inteligência de quem assiste. Porém, ao mesmo tempo, ela exige do expectador muita atenção na trama, o que pode ser um desafio para quem está acostumado a assistir séries ao mesmo tempo em que navega pelo Twitter.

Outro uso bastante inteligente para marcar as diferenças entre o tempo de cada personagem é na própria abertura da série: ao invés de uma sequência cheia de truques de computação gráfica, há uma aposta no minimalismo de um símbolo rúnico que representa o tema central do episódio, acompanhado do nome da série — tudo isso sobre uma tela preta — e mais nada.

Porém, quando chegamos ao último episódio da temporada, todos os sete símbolos são desmanchados para formar três novos — o lobo de Geralt, a andorinha de Ciri e a estrela de Yennefer —, mostrando não só o que deverá ser a abertura oficial da série, mas também deixando claro que, a partir daquele momento, os três dividem o mesmo tempo presente.

Dê um trocado para o seu bruxo

The Witcher não é, nem de longe, um sucessor ou substituto para Game of Thrones, e poderia aprender algumas lições valorosas com a série da HBO, principalmente no quesito de explicar seu universo de fantasia para um espectador que não sabe nada sobre ele. Mas como não devemos julgar a série por quão diferente ela é da maior obra de fantasia medieval já desenvolvida para a TV na história, e sim por seus próprios méritos, The Witcher é não apenas uma adaptação completamente fiel aos livros e que deverá deixar muito feliz e satisfeito aqueles que já conhecem sobre o universo do bruxo — seja pelos livros ou pelos videogames — como também é uma das melhores séries de todo o catálogo da Netflix. Não à toa, atualmente ela é a série original do serviço de streaming com a melhor nota do site IMDb (Internet Movie Database).

E, se a primeira temporada tem seus defeitos, muitos deles deverão ser corrigidos na já confirmada segunda temporada, que finalmente sairá do terreno pantanoso de adaptação de contos para começar a adaptar os romances do bruxo, o que deverá trazer para ela a linha narrativa bem definida que tanto fez falta durante seus primeiros oito episódios.

Todos os episódios da primeira temporada de The Witcher já estão disponíveis no catálogo da Netflix.

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Fonte: Canaltech

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