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The Witness e o peso de ter o poder de um deus




Crítica | The Witness e o peso de ter o poder de um deus - 1

O cinema sul-coreano tem se mostrado cada vez mais forte. Essa afirmação serve tanto para revelar políticas internas do país quanto para ressaltar a qualidade artística do que é produzido por lá. Assim, atualmente, ao mesmo tempo em que consegue exportar diretores do calibre de Chan-wook Park (Segredos de Sangue) e Joon-ho Bong (Okja), suas produções nacionais são mais assistidas nos cinemas pelo seu povo do que as produções hollywoodianas – sendo um dos poucos países no planeta com essa marca.

Kyu-Jang Cho, o estreante diretor de The Witness (disponível na Netflix), demonstra um potencial dos mais vistosos para um primeiro trabalho. E é perceptível em filmes produzidos para uma plataforma de streaming global (ou quase isso), por mais que as culturas sejam diferentes, que existe uma certa busca pela uniformização do cinema. Apesar de ser um fato um tanto quanto triste ver as linguagens do cinema sendo diluídas e formando uma única singular, por outro lado é possível reconhecer traços exclusivos difíceis de serem exterminados por essa globalização artística.

Cuidado! A partir daqui esta crítica pode conter spoilers!


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A visão de Deus

Dessa forma, Kyu-Jang Cho já revela no início do seu filme, em apenas alguns segundos, sua própria expectativa: em um plano de cima – um ponto de vista chamado de God’s Eye View (como se fosse a visão de Deus) –, com tudo de cabeça para baixo, vê-se um carro se aproximando. A imagem, então, movimenta-se apenas em seu eixo vertical, fazendo com que, ao passar, o carro e tudo o mais transmutem-se para um plano normal. É como se o diretor dissesse que, além de somente Deus estar presenciando o que acontece naquele veículo, há uma situação fora do controle se aproximando.

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(Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)

Tal técnica, tão bem utilizada por Chan-wook Park em sua Trilogia da Vingança – composta pelas obras-primas Mr. Vingança (2002), Oldboy (2003) e Lady Vingança (2005) –, acaba sendo pulverizada durante todo o filme. É perceptível, por exemplo, que Sang-hoon (o protagonista da história, interpretado por Sung-min Lee) percebe de cima o crime sendo cometido. Sendo a witness (testemunha) do título, ele estaria ligado diretamente a Deus apenas por um plano pensado pelo diretor. E fica cada vez mais clara essa alusão de que testemunhas são como olhos divinais, com poder de decidir a vida de outras pessoas.

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(Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)

 

O roteiro, por sinal, sempre que possível escancara de uma maneira muito natural essa relação. Seja quando repetidamente insere o andar onde mora Sang-hoon nos diálogos, seja ao gradativamente reforçar o poder que existe com aquele homem. Há quase uma aura sobrenatural, uma força que pode salvar vidas ou simplesmente deixá-las morrer – de repente trazendo o pensamento particular de um diretor proveniente de um país de maioria cristã sobre o que é ou quem é Deus.

A queda de ritmo e a falta de empatia

Com esse background, é provavelmente necessário entender que, apesar de tantas boas intenções e tantos debates necessários, Kyu-Jang Cho é inexperiente. Por mais que sua abertura seja tão incisiva e respingue durante as quase duas horas de duração, há uma queda de ritmo considerável após o eficiente ato um. É justamente quando o filme chega àquela que talvez seja sua cena mais impactante – o primeiro assassinato – que tudo começa a perder algumas camadas de tensão. Se antes havia um frenesi mental por não se saber sobre a situação, agora, com tudo claro, o drama do pai que pretende se proteger e proteger sua família toma mais à frente e suprime o suspense. Não que este suspense não esteja mais ali, mas o mistério que alimentava o interesse perde um pouco da força.

Para compensar, o roteiro traz discussões sociais bastante pertinentes, sendo a falta de esforço para ajudar o próximo a mais efetiva. Nesse sentido, mostra-se o pensamento de que mais vale ter seu apartamento sem queda no valor de revenda do que encontrar a mulher desaparecida de um vizinho que pede ajuda – cena que observada de longe por Sang-hoon em alto e bom som, agora que o protagonista já está intimamente ligado a um certo poder divino.

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(Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)

“O que você é? Você é o Diabo?”

Ainda, enquanto o assassino aparece e desaparece como se realmente fosse um ser das sombras – tendo acesso aos apartamentos, aos corredores, a carros e a motocicletas sem qualquer aprofundamento (locais muitas vezes com travas eletrônicas high-tech, mas sem uma câmera de segurança sequer), o roteiro faz questão de ressaltar que, da mesma forma que Sang-hoon é uma espécie de deus por ter o poder do testemunho, o criminoso ali é a personificação de um demônio.

Não somente por martelar a cabeça de uma mulher, por perseguir as testemunhas e por voltar a matar, mas, especialmente, por entregar a cabeça de um cachorro dentro de um saco para a própria dona. Há simbolismos que se referem aos cães como seres que unem os dois mundos – o céu e o inferno, o bem e o mal. Por um lado, fiel, guardador da morada; por outro, um matador impuro como os lobos. Claramente, Bbibbi não era condutor de almas no mundo dos mortos, como o cabeça de chacal egípcio Anúbis, ou um monstro de três cabeças guardião do mundo inferior, como o Cérbero grego – que evita a saída dos mortos para o plano mortal.

E a prova que rima toda a estrutura do filme com sua cena de abertura vem em uma das últimas sequências. Durante um embate entre protagonista e antagonista – banhado por uma chuva que pode remeter a um dilúvio –, Sang-hoon pergunta: “O que você é? Você é o Diabo?” Em seguida, em seus segundos finais, The Witness encara o silêncio. Tudo acaba e, em um gesto contrário, retornando ao local onde tudo começou, o sobrevivente olha para cima, justamente para onde o assassino lhe vira antes, e, em teste, grita por ajuda.

Ali ele está gritando por Deus. Mas ninguém, enfim, quer o peso de ter tanto poder.

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(Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)

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Fonte: Canaltech

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