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Mortal Kombat 11: o jogo que finalmente disse “não” para a sexualização




Mortal Kombat 11: o jogo que finalmente disse “não” para a sexualização - 1

Diga a verdade: você já parou para se questionar do porquê de uma lutadora estar em plena guerra regada a carnificina utilizando apenas um biquíni e botas de salto agulha, com direito a poses sensuais e o enquadramento dando close convenientemente na região dos seios ou do bumbum? De tanto que isso acontece nos filmes e nos games, muitos acabaram se acostumando, mas essa prática apelativa tem nome: sexualização.

Em 2016, na Universidade de Indiana, foi feito o primeiro estudo a analisar as personagens femininas dentro dos jogos e durante toda a história da aparição delas nos games. Intitulada “Sexy, fortes e secundárias: Uma análise de conteúdo das personagens femininas nos videogames durante 31 anos”, numa tradução livre, a pesquisa apontou que a sexualização está diminuindo, por meio de uma comparação entre as décadas de 1990, 2000 e 2010. Apesar disso, ainda é muito comum encontrar personagens femininas hipersexualizadas na indústria dos games, mas tendo os jogos lançados em 2019 em mente, um deles trouxe uma luz no fim do túnel: Mortal Kombat 11.

Não precisamos ir muito longe: nos próprios antecessores de Mortal Kombat 11, ainda existiam trajes que beiravam o ridículo com a necessidade irrefreável de tornar as personagens femininas muito sensuais, mesmo que não houvesse coerência nenhuma com a trama em si. A Sonya Blade, por exemplo, que inclusive foi a primeira personagem feminina a ingressar a franquia, já chegou a usar um colete que mal cobria os seios e blusinha branca coladinha, deixando em evidência seios escandalosa e desnecessariamente fartos, o que não faz sentido algum para o contexto em que ela está inserida: uma soldado da Special Forces em plena batalha. Nesta edição, os criadores resolveram investir no realismo: não apenas os traços estão muito mais condizentes com a realidade, mas também os trajes. A personagem em questão deixa de lado o colete minúsculo para vestir uma jaqueta que traduz bem mais a sua profissão.


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Sonya Blade deixa de usar trajes sensuais para aderir à jaqueta militar em Mortal Kombat 11

Mas se você acha que as mudanças se limitaram aos trajes, está bem enganado. O jogo também deu atenção para a questão de comportamentos (como poses, por exemplo) que acabam levando a personagem feminina para o lado sensual e submisso, e trouxe para elas o ar de guerreira que mereciam. Um exemplo é a Jade, que em Mortal Kombat 9, ao vencer uma luta, fazia uma pose bem sensual dando a entender que seu bastão é um pole dance, e exibia as suas botas (com salto alto, é claro), enquanto olhava sedutoramente para a câmera. Já essa nova Jade faz uma pose de guerra mesmo, com punho no chão e expressões severas. Outro diferencial do Mortal Kombat 11, além da clara mudança nas skins das personagens, investindo muito mais na maturidade e na coerência, o jogo também tomou muito mais cuidado em trazer identidade para cada um dos personagens, com feições mais realistas, deixando em evidência uma preocupação em não cair no genérico.

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Pose de vitória da Jade em Mortal Kombat 9 (parte de cima) e em Mortal Kombat 11 (parte de baixo)

Apesar da iniciativa, muitos fãs do jogo ainda não estão preparados para essas mudanças, e chegaram a se manifestar nas redes sociais com revolta e escárnio. Um jogador norte-americano fez, inclusive, uma montagem com uma personagem vestindo uma burca durante a luta, como uma crítica aos trajes que envolvem as personagens do jogo recente, que são mais do que pedaços finos de pano cobrindo os mamilos: “Todos estão rindo das mulheres feias em #MK11. Se as decisões de design no #MK11 são para alcançar algo, então espere por personagens femininas no modo ‘#BatalhaDeBurca’ no #MK12, assim você não precisa se preocupar em ver suas caras feias”, escreveu, ao compartilhar no Twitter:

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Jogadores debocham e manifestam insatisfação com mudanças em MK11 (Foto: Reprodução/Twitter)

A sexualização na indústria dos games

A professora universitária Érika Caramello, coordenadora do NERD (Núcleo de Estudos de Redes Digitais do Fiam Faam – Centro Universitário) e mentora da Women Game Jam SP, concorda com a pesquisa realizada pela Universidade de Indiana, e afirma que a sexualização vem diminuindo quando se trata da representação de personagens femininas em jogos nas grandes franquias AAA. A pesquisadora aponta, como exemplo disso, a personagem Lara Croft, da franquia Tomb Raider que, se comparada com as primeiras edições do jogo, mudou sua forma física e hoje fica mais próxima de uma mulher real, além de ter tido suas roupas cobrindo mais o corpo, trocando o short e barriga de fora por uma calça com uma regata mais comprida.

Apesar de acreditar na queda da sexualização, Érika observa: “Obviamente que nem todas as franquias fizeram essa mudança, especialmente naqueles jogos cujo público masculino predomina, tais como os de luta. Exemplo disso é a personagem brasileira Laura, do Street Fighter V, cujo jogo foi lançado na mesma época da nova roupagem da Lara Croft: Laura tem uma calça transparente na parte de trás, mostrando seu biquíni fio dental. Nós sabemos que aqui no Brasil ninguém luta capoeira ou jiu-jitsu com aquele tipo de traje, mas isso ainda é um tanto comum no mercado mainstream de games”.

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Lutadoras de Mortal Kombat hipersexualizadas em edições anteriores a Mortal Kombat 11 (Mileena, à esquerda, Kitana, no centro e Jade, à direita)

Segundo Érika, apesar dos esforços perceptíveis entre os games independentes, a indústria ainda é prioritariamente composta por homens brancos héteros e cis, então suas temáticas e visões de mundo predominam. De acordo com o II Censo da Indústria de Games, no Brasil, pouco mais de 20% das vagas nos estúdios são ocupadas por mulheres. Em sala de aula, essa proporção é ainda menor. “Acredito que ainda vai levar um bom tempo para mudar isso, porque também é cultural — games sempre foram considerados artefatos essencialmente masculinos, até porque a competição é algo culturalmente associada à educação masculina. Se olharmos para grandes eventos, como é o caso da Brasil Game Show (BGS), as grandes atrações da indústria são homens”, afirma.

A pesquisadora explica que o mesmo se repete quando pensamos nos jogadores: por mais que os e-sports sejam um fenômeno contemporâneo, praticamente não há mulheres entre os principais jogadores de expressão, e quando jogam, ou elas se escondem atrás de apelidos masculinos ou neutros ou sofrem todo tipo de assédio, e que se isso não fosse verdade, não haveria porquê criar um movimento como o My Name, My Game. “Por outro lado, quando eu ingressei nessa área em 2006, eu não tinha referências de colegas tanto na academia, quanto nas produtoras de games. Hoje já temos uma série de professoras, autoras e desenvolvedoras trabalhando na área, o que acena para um futuro menos hostil para as mulheres nesta indústria. A própria Women Game Jam é uma iniciativa nesse sentido que faz toda diferença: participei como mentora da última edição em São Paulo e posso afirmar que nunca me senti tão acolhida na área como naquele evento. Aos poucos, estamos ocupando estes espaços”, aponta.

Mudanças a passos curtos

Quanto ao Mortal Kombat 11, Érika indica que esse tipo de mudança vem a partir da leitura do mercado, e que hoje já temos mais jogadoras do que jogadores de videogame (no Brasil, as mulheres compõem 52, 54% do mercado) e os países mais periféricos são aqueles que apresentam maior crescimento de jogadores, uma vez que os países desenvolvidos são evangelizadores no quesito tecnologia. Assim, mulheres e demais jogadores dessas regiões periféricas também buscam suas representações nos personagens de videogames, e nada mais adequado do que oferecer diversidade cultural e identitária neste quesito. No entanto, de acordo com a professora universitária, a grande indústria de games ainda está presente em países desenvolvidos e é composta em sua maioria por homens brancos héteros cis, e a maioria ainda persiste nesse olhar preconceituoso. “Mas como o interesse econômico é o que manda num mundo capitalista, essa indústria precisa se reinventar para não perder mercado”, explica.

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Lutadoras femininas de Mortal Kombat 11 com trajes muito menos sexualizados (Frost, Kitana, Cetrion na fileira de cima e Cassie, Skarlet e Jacqui na fileira de baixo)

Érika conta que, além da questão identitária que os jogadores projetam nos avatares jogáveis, a própria indústria criativa também está começando a apresentar novas roupagens para ter diferenciais frente a tantos títulos lançados diariamente. “Sempre me recordo de um antigo chefe que trabalha na área de HQ: alguns desenhistas o reproduziam nas histórias porque precisavam de rostos novos, mesmo que seu figurante estivesse em meio a uma multidão de outros personagens”, disserta. “Também há a necessidade de inovar em termos de contar outras histórias. Na indústria do cinema, aconteceram recentemente muitos lançamentos de filmes protagonizados por heroínas e dirigidos por mulheres, algo distante se compararmos com a década passada. Com a diminuição das fronteiras proporcionada pela popularização da internet, há a necessidade de contar outras narrativas, com outras visões de mundo. Este efeito dominó já atingiu a indústria de games”, a pesquisadora acrescenta.

Por fim, a professora universitária aponta que boa parte da indústria de games, principalmente a ocidental, prima pelo realismo. Então, a comunidade gamer vibra quando os gráficos dos jogos 3D são bem realistas, mas quando uma personagem feminina perde suas formas exageradamente sexualizadas e se aproxima do real, há um descontentamento geral no público masculino, que ainda compõe boa parte dos jogadores das grandes franquias de jogos para console. Em contrapartida, Érika diz que os próprios movimentos sociais já estão dando uma nova tônica nesse mercado, desconstruindo velhas práticas.

“Do mesmo jeito que vemos gamers incentivando a perpetuação da sexualização, alguns já estão se colocando contra, especialmente nas redes sociais. É importante destacar também que outras minorias sociais estão tendo acesso hoje ao videogame, especialmente as mulheres, que já compõem a maioria dos jogadores, embora sua presença fique muito mais concentrada em casual games – os famosos jogos para passatempo”, conclui.

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Fonte: Canaltech

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