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O que é o afrofuturismo, gênero artístico que mescla cultura africana com sci-fi




O que é o afrofuturismo, gênero artístico que mescla cultura africana com sci-fi - 1

*Por Patricia Gnipper e Claudio Yuge

E aí, você ficou impactado por Pantera Negra, de 2018, que se tornou o primeiro filme exibido nos cinemas da Arábia Saudita em 35 anos? Muito além de apenas um “filme de super-herói”, Pantera Negra é um autêntico representante do afrofuturismo para as massas, abordando cultura africana e embates sociais com as vestes da ficção científica.


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Mas o que é o afrofuturismo, como ele surgiu, que outras obras fazem parte do movimento, e por que ele é algo tão relevante em pleno século XXI?

Bê-a-bá afrofuturista

Mais do que um gênero artístico, o afrofuturismo é um movimento estético, social e cultural, combinando elementos da ficção científica com história, fantasia e temáticas não-ocidentais com o objetivo de retratar os dilemas negros e, ainda, interrogar eventos históricos relacionados ao racismo global.

Para Kênia Freitas, curadora da mostra Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica (que aconteceu em São Paulo anos atrás), o afrofuturismo “é um movimento que abrange diversas narrativas de ficção especulativa – aquela que se propõe a especular sobre o futuro e o passado –, sempre da perspectiva negra, tanto africana quanto diaspórica”. Ainda, a escravidão fez com que negros se sentissem “verdadeiros alienígenas”, uma vez que eram incapazes de se comunicar em uma língua desconhecida para eles, tornando-os ainda mais vulneráveis. Sendo assim, “somos descendentes deste processo de alienação, e se apropriar da escravidão para criar algo novo, como uma narrativa de ficção especulativa, é comum no afrofuturismo”, explica Kênia.

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Arte típica do astrofuturismo (Reprodução: Ðrojan Visuals)

Freitas entende, ainda, que a força do movimento afrofuturista está exatamente na possibilidade de “manipular e se apropriar dos tempos passado e futuro para propor uma subversão de pensamento”, tendo “histórias de repressão, violência e racismo – mesmo que com outras espécies de alienígenas, outras sociedades, outros planetas e outros tempos –, e isso acaba sendo, no final das contas, uma forma de repensar e criticar o presente”.

O termo foi cunhado em 1993 por Mark Dery, mas na década de 1950 já existiam produções afrofuturistas na arte. Contudo, foi somente no final da década de 1990 que o gênero começou a ganhar força, muito graças a debates iniciados pela estudiosa Alondra Nelson. Mas, voltando aos anos 1950, talvez a obra que possa ser considerada o primeiro marco do afrofuturismo tenha sido Invisible Man, de Ralph Ellison, publicada em 1952.

Ellison critica o futuro marcado dos negros dos Estados Unidos e, ainda que não seja propriamente dito um livro afrofuturista por não oferecer uma perspectiva melhor de futuro à comunidade, marca o gênero por proporcionar a reflexão com a mentalidade afrofuturista.

Já na música, naquela mesma década surgiu Sun Ra, trazendo conceitos afrocêntricos e abordando em suas canções temáticas da cultura africana antiga. O artista participou de festivais de jazz em todo o mundo. Então, em 1975, George Clinton reviveu a cultura afrofuturista, levando-a ao grande público por meio de seu grupo Parliament-Funkadelic, tendo o álbum Mothership Connection como sua verdadeira obra-prima.

Menção honrosa para a estética afrofuturista de Grace Jones, que, enquanto modelo, atriz e cantora, escandalizou a indústria do entretenimento com seu visual com toques de androginia, além do hip-hop do Afrika Bambaata, e também para o trip-hop de Tricky, que se inspiraram no afrofuturismo em seu trabalho, enquanto que, aqui no Brasil, a Nação Zumbi também tem umas pitadas do movimento.

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A diva Grace Jones no alto de sua glória (Foto: Divulgação)

E foi em 1994 que o crítico cultural Mark Dery publicou um ensaio chamado Black to the Future, escrevendo sobre características artísticas em comum na ficção científica e na música afro-americana. Então, estudiosos começaram a expandir a temática do afrofuturismo por aí, sendo que Alondra Nelson definiu o movimento como uma forma de se olhar para a posição da pessoa negra que abrange temas de alienação e aspirações para um futuro utópico. Nelson também notou que as discussões que envolvem raça e tecnologia muitas vezes reforçam a crítica da “divisão digital” – termo que descreve a desigualdade racial e econômica e sua relação com o acesso à tecnologia.

Já no século XXI, uma nova geração de artistas abraçou o afrofuturismo na música, na moda e também no audiovisual. Podemos citar artistas como Beyoncé e Rihanna como responsáveis por trazer a temática à cultura pop, e FKA Twigs como uma representante da música considerada “cult” no movimento.

E, falando da ficção científica, podemos destacar nomes como o de Nnedi Okorafor, cuja novela Bindi venceu um Prêmio Hugo; Steve Barnes, com romances afrofuturistas como Lion’s Blood e Zulu Heart; bem como William Hayashi com trilogia Darkside, cuja história mostra que afro-americanos viviam secretamente na Lua desde antes da chegada de astronautas com a missão Apollo 11, sendo esta uma segregação imposta por negros tecnologicamente avançados.

No Brasil, temos o autor Fábio Kabral, criador de O caçador cibernético da rua 13 – romance que mescla crenças do Candomblé em um planeta tecnologicamente avançado que, por vezes, lembra a nação de Wakanda, de Pantera Negra. “Minha ideia é romper com a lógica ocidental e europeia de que o continente africano não tem nada a oferecer e, ao mesmo tempo, trazer uma visão afrocentrada para que as produções ficcionais não sejam sempre histórias de brancos em que os pretos estão ligados ao crime, ou são malandros”, conforme explicou o autor à revista Cult.

A importância de Pantera Negra

Pantera Negra mostra a nação de Wakanda, escondida na floresta tropical graças a tecnologias avançadas e exclusivas de seu povo, justamente para preservar o vibranium: um metal poderosíssimo que, explorado pelos wakandenses ao longo de séculos, permitiu seu desenvolvimento tecnológico e econômico de maneira singular e, por isso, reis do passado decidiram que a cidade deveria ser escondida do restante do mundo. Do contrário, os colonizadores colocariam suas ambições acima de tudo para roubar o tal metal dos wakandenses, colocando em risco todo o seu progresso.

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Shuri usa armas criadas por ela e sua equipe, contando com o poder do vibranium (Foto: Divulgação)

O filme é um exemplo atual e relevante do afrofuturismo do século XXI, misturando fantasia, tecnologia e ciência com questões raciais, sociais, políticas e econômicas, sendo o negro o ponto central da trama. E Pantera Negra vai além de simplesmente ser uma obra de entretenimento com uma estética afrofuturista: o filme proporciona reflexões válidas para a sociedade atual, que ainda tem o racismo e a segregação racial como pauta. Indo além, a trama divide opiniões: de um lado, defensores do protecionismo wakandense acreditam que a saída para o progresso negro é o isolamento, enquanto, do outro lado, há quem enxergue Wakanda como uma nação que, para se fortalecer, ignorou o sofrimento de todo o restante dos negros do mundo, que seguem enfrentando questões como pobreza e a violência sem receber nenhum tipo de auxílio por parte da nação desenvolvida.

Ainda, Pantera Negra se destaca por conta da representatividade e visibilidade da população negra na sétima arte. Afinal, mostrar heróis e líderes negros retratados com profundidade não é algo comum nos cinemas ocidentais. E isso não é mera opinião: de acordo com um relatório da UCLA, os negros representaram apenas 13,6% do elenco dos filmes de maior bilheteria em 2017, e ainda são constantemente sub-representados.

Portanto, Pantera Negra pode ser considerado o grande representante do protagonismo negro nas artes do mainstream, desafiando o público geral (acostumado a ver negros sendo retratados de maneira estereotipada nas telonas) a digerir personagens africanos que não são definidos por coisas como crime e subserviência, mas, sim, definidos por sua excelência.

Além disso, com o desfecho da trama, fica a “moral da história” de que os países europeus jamais serão capazes de pagar sua dívida histórica para com as populações negras, e uma guerra declarada somente traria ainda mais tragédias, para ambos os lados. Na opinião de Fábio Kabral, “a solução de fortalecer as nossas comunidades por meio da assistência, ensino, cuidado e acolhimento é a melhor saída”.

Ta-Nehisi Coates, Jordan Peele, Ryan Coogler e o novo afrofuturismo

Embora as raízes do afrofuturismo estejam nos anos 1950 e 1960, e a ascensão do gênero tenha acontecido no final dos anos 1990, seus conceitos têm sido mais celebrados do que nunca atualmente, por meio de um recente geração de artistas que vêm tomando conta das prateleiras de livros, salas de cinema e bancas de quadrinhos. São autores que trazem uma grande bagagem social, cultural e política em perspectivas nunca antes vistas na ficção científica.

Alguns deles são bem populares e, mesmo que não estejam ligados diretamente à produção literária ou cinematográfica, ajudam a levar a definição do afrofuturismo às grandes massas. É o caso das cantoras e produtoras Rihanna, Beyoncé e Janelle Monáe, que costumam usar essa influência na identidade visual de seus shows e figurinos. Outra grande figura que tem ajudado nesse sentido é Neil deGrasse Tyson, hoje uma notória personalidade na ciência e apresentador da série Cosmos: Uma Odisseia no Espaço, uma releitura atualizada da série Cosmos originalmente apresentada por Carl Sagan em 1980.

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Ryan Coogler, diretor de Pantera Negra (Foto: Gage Skidmore)

Entre eles, três têm chamado mais a atenção. O primeiro é Ryan Coogler, diretor de Pantera Negra (e de sua sequência), assim como de Creed (2015) e de Fruitvale Station (2013), no qual debutou. Uma de suas principais características é trazer não somente o design como também a política afrofuturista para as telonas.

“Sempre vimos o Pantera Negra como se fosse o personagem fosse o líder político de um país fictício, mas o colocamos em um continente real. Queríamos que o filme acontecesse no mundo real e é assim que o personagem se vê, como se identifica como político. E, por isso, Pantera Negra é definitivamente um filme político”, disse, em entrevista ao The Hollywood Reporter.

Ta-Nehisi Coates é outro nome que tem abordagem semelhante. O jornalista e ativista, que foi correspondente do periódico The Atlantic, é um dos mais proeminentes nomes do afrofuturismo político nos Estados Unidos. Ele já trabalhou no The Village Voice, Washington City Paper e contribuiu para o The New York Times Magazine, The Washington Post e The Washington Monthly. Por conta de sua habilidade como roteirista, foi contratado pela Marvel Comics.

Em sua passagem pelo título mensal do Pantera Negra, ele explicou que, na verdade, a chegada do vibranium à Terra na trama do personagem não é à toa. Nosso planeta, mais especificamente Wakanda, seria uma estação do planeta Bast, mesmo nome da deusa pantera adorada pelos wakandianos. Isso ampliou o background do personagem, com elementos completamente diferentes do que estamos acostumados.

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Pantera Negra de Ta-Nehisi Coates (Imagem: Marvel Comics)

O Pantera Negra de Coates fez muito sucesso, com um misto de uma estranha alta tecnologia em sociedade tribal interplanetária. O personagem é hoje tão respeitado que se tornou o líder dos Vingadores, e o autor saltou para outro título de primeira grandeza. É ele quem escreve a atual e elogiada fase do Capitão América — que, mais do que nunca, questiona o governo dos Estados Unidos nesse momento.

Já o cineasta Jordan Peele pode ser considerado um dos grandes responsáveis pela atual onda afrofuturista que vivemos atualmente. Foi depois que o seu estranho e excepcional terror Corra! saiu, em 2017, que vimos chegar ao mercado de entretenimento o revival de Blade (que em breve volta aos cinemas pelo Marvel Studios), a estreia de Pantera Negra e o sucesso anticapitalista Sorry to Bother You, além de Hancock, a animação Homem-Aranha: No Aranhaverso e a série de TV Raio Negro.

Com Corra!, Peele trouxe um enredo único e abstrato, com ideias cravadas em torno do afrofuturismo. As reviravoltas e a representação dos brancos trouxe uma pérola tão diferente para as salas de exibição que isso o levou ao Oscar: em 2018, ganhou o prêmio de Melhor Roteiro Original e foi indicado em outras três categorias (Melhor Ator com Daniel Kaluuya, Melhor Filme e Melhor Diretor).

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Corra! (Foto: Blumhouse Productions)

Peele voltou a fazer sucesso e trouxe outra produção bastante elogiada, Nós, e a nova versão do seriado sci-fi The Twilight Zone. Em breve, poderemos ver seu novo projeto, a série Lovecraft Country, produzida na HBO ao lado de J. J. Abrams. A trama é baseada no romance homônimo de Matt Ruff e aborda o racismo em uma narrativa inspirada por H. P. Lovecraft, que, veja só, também é conhecido por algumas passagens claramente racistas em suas obras. Talvez aí esteja a ironia e a crítica da própria atração.

E não para por aí: a escritora N. K. Jemisin ganhou o Prêmio Hugo de ficção científica pelo trabalho em The Stone Sky (2018), The Obelisk Gate (2017) e A Quinta Estação (2016). Ainda, Tade Thompson, um roteirista iorubá nascido na Grã-Bretanha, tornou-se o segundo escritor da herança negra africana a conquistar o prêmio Arthur C. Clarke.

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N. K. Jemisin (Foto: Laura Hanifim)

Abram alas, pois o afrofuturismo veio para ficar!

Afrofuturismo no combate ao racismo

A invisibilidade é algo que a população negra sente na pele em todas as camadas de nossa sociedade. E, não por acaso, a representatividade negra na política e nas artes é pauta tão crescente. Para Márcio Black, cientista político e produtor cultural, “o afrofuturismo oferece uma chave de entendimento que possibilita pensar em um futuro com mais justiça para a população negra”, sendo “um modo de imaginar e construir futuros possíveis pela ótica cultural negra, um ponto de ligação entre imaginação, tecnologia, futuro e libertação”.

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Fábio Kabral no lançamento de O Caçador Cibernético da Rua 13 (Foto: Thays Berbe)

Black analisa, ainda, que, por mais empática que a classe média branca e progressista se considere em relação a questões raciais, é justamente essa parcela da população que precisa se conscientizar sobre o quanto ela é privilegiada, e como, do alto de seus privilégios, acaba, não por coincidência, se alinhando a outros brancos de maneira política, econômica e cultural. “A reversão disso acontece quando o antirracismo se tornar uma regra primeira e inegociável em suas iniciativas, uma vez que ainda detêm acessos quase exclusivos a recursos e meios”, opina.

E como fazer com que a população branca se conscientize, efetivamente, uma vez que a militância negra fica, por vezes, restrita aos seus membros, sem que as demais lutas sociais deem a devida voz às causas raciais? É justamente aí que entra a popularização do afrofuturismo: uma vez que a temática se torna mainstream (isto é, abordada por grandes mídias, contando, agora, com o poder de Hollywood para tal), a conscientização acaba surgindo com ares de entretenimento para o público geral.

“O afrofuturismo é sonho, mas também é concretização. E é assim que se cria uma nova cultura, mais aberta a discutir mudanças estruturais necessárias. É assim, também, que se entende que implementações de políticas sociais são tão importantes quanto a radicalização das lutas”, afirma Black, que encerra sua reflexão dizendo que “talvez, no fim das contas, afrofuturismo não seja sobre um futuro possível, mas um futuro que já é nosso”.

*Com informações de Revista Cult, Voicers, Medium/Fábio Kabral, e Ponto Eletrônico.

*Agradeço a Barbara Oeiras, DJ e ativista do movimento negro, pela consultoria

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Fonte: Canaltech

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